segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A CASA ASSASSINADA DE LUCIO CARDOSO


Obra máxima de Lúcio Cardoso, um dos mais densos e originais ficcionistas da prosa brasileira surgidos nos anos de 1930, Crônica da Casa Assassinada (1959) é um livro de extrema complexidade, composto de um entrelaçamento de perspectivas e de recursos narrativos como trechos de diários, anotações, confissões, flash-backs, além de modos de expressão que se aproximam da mais pura poesia. Na verdade, todos esses meios são empregados para que o autor possa atingir seu objetivo principal: revelar o estado de alma angustiado de seus personagens e retratar o clima de pesadelo que permeia a história.

O enredo, porém, é simples. Trata da decadência dos Menezes, uma família de fazendeiros das Minas Gerais. Movidos por fortes sentimentos de inveja, incesto, desamor e ambição, os Menezes devoram-se uns aos outros até a mais completa desintegração financeira e moral. O fulcro da ação se dá no relacionamento amoroso entre Nina, mulher de um dos irmãos proprietários da fazenda, e o suposto filho deles, André. “Entre as várias implicações que a ligação André-Nina pode ter com o tema central do romance (a descoberta de Deus no Mal)", afirma a crítica literária Nelly Novaes Coelho, “parece-nos que a mais importante é [...] a dupla ânsia de sobreviver e de vencer as forças que se opunham à total expansão do ser."

O que interessa ao autor não é contar uma história nos moldes tradicionais, mas mergulhar na febre dos sentimentos conflituosos dos atores do drama, que faz par com a atmosfera de morbidez e de trevas que ronda a propriedade rural e o declínio da família. Essa preferência por explorar os fatores psicológicos e existenciais dos personagens, em cuja descrição se revelam traços de delírio, de terror, de anormalidade, já fazia parte dos romances anteriores de Lúcio Cardoso, como A Luz no Subsolo (1936), A Professora Hilda (1946) e O Enfeitiçado (1954). É o próprio romancista quem revela essa sua opção estética em nota ao A Professora Hilda: “O que neles [nos personagens] me interessa, o que quis mostrar nos seus destinos atormentados foi a força selvagem com que foram arrastados para longe da vida comum, sem apoio na esperança, sem fé numa outra vida, cegos e obstinados contra a presença do Mistério".

Nascido em Curvelo, Minas Gerais, em 1913, Joaquim Lúcio Cardoso Filho logo se transferiu para Belo Horizonte, onde completou sua formação escolar, e, depois, para o Rio de Janeiro. Foi na capital fluminense que, recebendo as influências do ambiente intelectual que freqüentava e de inúmeras leituras, iniciou suas experiências literárias. Antes dos 20 anos, já tinha guardadas centenas de páginas de prosa e de poesia. Foi descoberto pelo poeta Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), que em 1934 editou seu primeiro livro, Maleita, obra ainda presa à estética regionalista que fazia sucesso na época. Publicou mais de uma dezena de romances, além de escrever poesia, peças de teatro e roteiro de cinema. Crônica da Casa Assassinada virou filme de Paulo César Saraceni, em 1967. Lúcio Cardoso morreu no Rio, em 1968.

Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso
Crônica da Casa Assassinada, do escritor mineiro Lúcio Cardoso, obra publicada em 1973, acompanha a ruína de uma aristocrata família mineira. Uma saga que se desenrola nos limites de uma casa de fazenda. A casa desempenha o papel principal: os personagens são feitos do cimento da casa e esta, da carne dos seus habitantes. A perspectiva dos temores que habitam a casa, da casa que sangra, que sofre, que abriga os mais trágicos segredos.

Lúcio Cardoso revela pendor para criação da atmosfera de pesadelo e de sondagem interior a que lograria dar uma rara densidade poética. Aproveita as sugestões do surrealismo, sem perder de vista a paisagem moral da província que entra como clima nos seus romances.

Crônica da Casa Assassinada reconstrói de maneira admirável o clima de morbidez que envolve os ambientes e os seres. Fixa a angústia de um amor que se crê incestuoso. Em vez de referências diretas, são as cartas, os diários e as confissões das pessoas que conheceram a protagonista (e dela própria), que vão entrar como partes estruturais do livro, tornadno a narrativa incomum e que costuram com maestria a história dos Meneses, centrada na presença de uma mulher desconhecida..

A tragédia de um ser passa a refletir-se no caso das testemunhas; e estas percorrem a vária gama de reações que vai da febre amorosa ao ódio, deste à indiferença ou ao juízo convencional. O caso psicanalítico sai, portanto, do beco da auto-análise e assume dimensões familiares e grupais. Realiza uma forma complexa de romance em que o introspectivo, o atmosférico e o sensorial não mais se justapusessem, mas se combinassem no nível de uma escritura cerrada, capaz de converter o descritivo em onírico e adensar o psicológico no existencial.

Crônica da casa assassinada surpreende antes de tudo pelo seu fôlego, e também pelo uso apropriado e coerente de vários instrumentos narrativos, cada um deles a cargo de um narrador diferente. Enquanto viaja devagar por uma trilha escura, à margem da qual se sucedem os sinais de desvios psicológicos e conflitos de natureza moral, o leitor testemunha a demorada queda da casa dos Menezes, tradicional família mineira - esse reduto de dominação e violência discreta que o autor fez questão de atacar sem piedade.

A agonia de Nina, protagonista da obra, sua alma libertária presa a um corpo carcomido pelo câncer, é a ramificação da metástase que condena a casa e contagia seus habitantes com a degenerescência da propriedade produtiva transformada em um cemitério de mortos-vivos.

As flores, violetas, marcam as estações dos personagens, os enganos, a vida na realização do amor no canteiro de um homem jovem, as tantas mortes, a ressurreição possível na imortalidade dos genes e a prisão a que estão condenados os homens resignados.



Personagens

Os personagens principais são: os irmãos Meneses, Valdo, Demétrio e Timóteo; as esposas dos dois primeiros, Nina e Ana; Alberto, o jardineiro, Pe. Justino e finalmente André, o qual é tomado durante toda a narração como filho de Valdo e Nina, mas somente no último capítulo se revela com certeza a verdade: era filho de Ana e Alberto, o jardineiro.

Nina, personagem principal, é apresentada no olhar dos outros e permanece com muitos mistérios a serem desvendados pelo leitor. É uma mulher do Rio de Janeiro com um passado suspeito e gostos extravagantes que se deixa enganar pela pseudo-riqueza de Valdo Meneses. Quando chega à chácara no sul de Minas Gerais, depara-se com uma família decadente e uma casa em ruínas. Além da pobreza material, existe a miséria das almas, a solidão e a perversão escondida sob o desgastado telhado. A personagem é construída pelo discurso de todos os personagens da obra.

Timóteo, o Meneses homossexual, é prisioneiro em seu quarto e em sua loucura, se veste com farrapos de roupas femininas e com ricas jóias de família, para atingir a vital libertação com a destruição dos falsos alicerces da família. Timóteo é o brilho enterrado junto aos espectros de quem perdeu a capacidade de se identificar distante do nome da família, a valorização dos esquecimentos consentidos, a memória emoldurada em algum lugar do cômodo fechado. É um personagem ímpar. É impossível defini-lo no universo vazio dos Meneses. Representa o que as famílias tentam esconder em seu corpo monstruoso, o que gritam os grandes silêncios na lucidez de suas percepções encarceradas numa alma demente, as rachaduras que condenam a construção nos primeiros alicerces. Suas falas traçam a realidade da família presa aos escombros: “É esta a única liberdade que possuímos integral: a de servos monstros para nós mesmos.”.

Ana, esposa de Demétrio Meneses e cunhada de Nina, é a narração das intenções da protagonista, um olhar sempre escondido acompanhando a vida pulsar na beleza do corpo de Nina com revelações assustadoras para quem está condenada a ser uma sombra dentro da metafórica casa. Uma personalidade que cresce no enredo, compreende a vida (morte) nas presenças e ausências dos demais personagens, amarga os interditos e sobrevive a todos para, num final miserável, confessar os pecados e morrer sem perdão.

Resumo do enredo

Quando Nina, recém-casada com Valdo chega à chácara dos Meneses, vinda do Rio de Janeiro — depois de sucessivos adiamentos que levam seu marido a uma situação de desconfiança e ciúme — fica sabendo logo na primeira refeição com a família, da difícil situação econômica em que esta se encontra: Valdo a tinha enganado. Demétrio, talvez por alguma desforra de briga familiar ou simplesmente por inveja, faz questão de revelar a verdadeira situação econômica da família, em meio a áspero diálogo com seu irmão, chega inclusive a dizer que Valdo não tinha enviado o dinheiro que prometera a Nina para a viagem até a chácara porque não o possuía.

A vida monótona na chácara Meneses vai pouco a pouco desconsolando Nina, pouco acostumada a essa vida do campo. Depois de muito insistir com Valdo, passa a morar com ele no "pavilhão" que ficava afastado da casa onde moram os demais e, nesse ambiente, tem uma temporada feliz.

Entretanto, e aproveitando-se dessa situação, Nina pôde começar um romance oculto com o jardineiro Alberto, até que um dia foi surpreendida por Demétrio em atitude suspeita, apesar de não ser de todo conclusiva. Demétrio não deixa de fazer um escândalo de Nina, mesmo esperando o primeiro filho, decide abandonar a chácara e voltar para o Rio.

Por causa desse incidente, Valdo fica bastante desolado e tenta o suicídio. Nina, ao ver a reação do marido, como que movida de compaixão, volta atrás na sua decisão de partir. No entanto, esse sentimento dura pouco e, passado o primeiro momento, volta para o Rio.

As atitudes de Nina são sempre abusivamente falsas. Engana a todos defendendo seus interesses. Mente dizendo ser sincera. Estando já no Rio, chega a escrever a Valdo dizendo que apenas pensou remotamente no jardineiro, depois de ter negado tantas vezes qualquer envolvimento. A Ana, do mesmo modo, confessa abertamente ter-se apaixonado e relacionado com ele, com a finalidade exclusiva de fazê-la sofrer e escandalizá-la, desabafando todo ódio que sentia por ela.

Sua decisão definitiva de abandonar a chácara é tomada pelas revelações de Timóteo e Betty, a empregada, que tinham escutado a conversa entre Valdo e Demétrio, quando discutiam e decidiam mandar Nina embora.

Timóteo é um personagem totalmente esquisito;sempre trancado em seu quarto vestia-se com as roupas se sua mãe, mas chegou a ganhar a amizade de Nina.

Betty sempre muito fiel e prudente, é amiga e fiel servidora de todos e chega mesmo a ser conselheira apesar de não estar totalmente a par dos fatos.

Para Ana a partida de Nina representa um grande triunfo e alívio, pois não se pode conter na sua inveja e inferioridade e por outro lado (como só ao final do livro se revela), tinha-se apaixonado por Alberto exatamente quando descobre o romance deste com Nina e faz tudo por ganhar a preferência dele, do qual acaba por esperar um filho.

A sua vida com Demétrio era tediosa e o seu ciúme cresce dia a dia. Persegue Nina em suas saídas e encontros furtivos e chega mesmo a enfrentar-se com ela.

O que encobriu suas faltas foi a saída de Nina, pois aproveitando-se do conselho que o médico lhe dera: "já não anda bem de saúde", obtém permissão de viajar para o Rio e tentar convencer Nina a voltar, ou pelo menos trazer o filho do Valdo. Em virtude deste fato, oculta a sua gravidez e pode dar a luz a seu filho no Rio de Janeiro.

Quanto a Alberto, no dia em que soube da partida de Nina, a definitiva, suicidou-se. Um pouco antes, para agravar o seu estado emocional, tinha sido despedido por Demétrio, mas mesmo assim não fora embora. O Autor habilmente faz parecer pelo relato de Ana que Nina teria jogado um revólver pela janela propositalmente, o qual é apanhado pelo jardineiro que espreitava pelo jardim uma conversa de Nina e Valdo.

Ana ainda o vê agonizante, mas já não pode fazer mais nada. Antes riu porque suspeitava dessas conseqüências, mas apenas aguardou os acontecimentos.

Somente depois de quinze anos é que Nina volta a manifestar-se a Valdo. Pede-lhe dinheiro e depois diz que vai regressar à chácara, para o que é seu, principalmente seu filho, André.

Passou todo esse tempo, como antes de casar-se, protegida por um coronel amigo de seu pai, o qual a sustentava sem nada exigir.

Entretanto abandona o bom amigo e regressa à chácara, iniciando logo um estranho e apaixonado romance com seu aparente filho, André.

Ana logo desconfia e descobre a situação seguindo-os e no fundo procurando uma vingança contra Nina, por seu recalque e ciúme.

Nesse intermédio, tanto Ana quanto Valdo procuram o apoio do Pe. Justino — que lhes aconselha douta e praticamente, mas não obtém resultado satisfatório.

Valdo, pela atitude do filho, começa a desconfiar e tenta dialogar com Nina, a qual reage fulminantemente, surpreendida de que seu marido pudesse desconfiar da esposa e do próprio filho. Até que um dia Nina revela padecer uma doença e pede dinheiro para tratar-se no Rio. Parte no dia seguinte, depois da anuência de Valdo (que por sinal não acredita) e sem dizer nada a ninguém.

Durante 15 dias que passa no Rio, vai ao médico, examina-se e se comprova o estágio muito avançado da enfermidade e o pouco tempo de vida que terá. No último dia de Rio de Janeiro encontra-se com o coronel, dizendo que voltava para ficar e que era sincera com ele; no entanto, consegue fazer com que ele compre todo um guarda-roupa novo para si e desaparece sem nenhuma outra satisfação.

Regressa à chácara e pouco tempo depois tem que guardar o leito até o dia do seu falecimento.

Para André, a sua vida se transforma quando conhece Nins e a paixão por ela o cega totalmente. Vive como um adolescente apaixonado, sem perceber direito a dimensão do seu pecado. Não entende muito o que ocorre e também não se esforça por fazê-lo, somente querendo dar vazão ao seu sentimento.

O último capítulo do livro "Pós-escrito numa carta do Pe. Justino", traz a grande revelação final. Ana luta contra a sua consciência. A sua maldade e frustração haviam sido demasiadamente grandes. Tinha ido morar no "Pavilhão" e estava moribunda, quando manda chamar o Pe. Justino. Queria dizer-lhe tudo a bem da verdade e que todos soubessem, André era seu filho natural e não de Nina e Valdo.

Entretanto o que mais lhe doía é que Nina devia sabê-lo (nunca teve certeza disto). Deu-se esta circunstância exatamente porque quando foi ao Rio buscar Nina, domente entrou em contacto com ela após o nascimento de André. Nina disse-lhe ter deixado o filho de Valdo no hospital e que não sabia mais dele, e aproveitando-se disso, Ana trouxe André à chácara como sendo o filho de Nina e Valdo. Na verdade, ela não tinha ido ao hospital buscá-lo, como dissera a Nina.

Assim como durante toda a sua vida, Ana morre sem esboçar arrependimento, mas apenas um remorso profundo por ter agido errado. O Pe. Justino não pode tentar mais nada apesar de compreender bem o estado daquela alma e da gravidade do seu pecado.
Lúcio Cardoso, mineiro de Curvelo, nasceu em 14-08-1912. Chamado pelo crítico Alfredo Bosi de "inventor de totalidades existenciais", Lúcio foi escritor, dramaturgo, jornalista, e poeta. Realizou, com Paulo César Saraceni, o primeiro longa-metragem do Cinema Novo. Nos últimos anos de sua vida, pintava. Para ele, a arte era vital, tanto que com ela fez um pacto, utilizando-se — como ficcionista monumental que era — simultaneamente de diversos recursos narrativos (diários, memórias, cartas, confissões, poesias, depoimentos...) para, articulando a suposta fragmentação, fazer surgir a tragédia humana com toda sua carga de paixão, angústia, erotismo, solidão e desespero. Em um universo ontologicamente dilacerado, com uma prosa cuja poesia dá vazão ao desejo transgressivo, os personagens se desnudam em tensões recriadoras da objetividade do mundo. Dizia ele: "Escrevo para que me escutem — quem? Um ouvido anônimo e amigo perdido na distância do tempo e das idades. Para que me escutem se morrer agora. E depois, é inútil procurar razões. Sou feito com estes braços, estas mãos, estes olhos e assim sendo, todo cheio de vozes que só sabem se exprimir através das vias brancas do papel, só consigo vislumbrar a minha realidade através da informe projeção deste mundo confuso que me habita. E também porque escrevo porque me sinto sozinho. Se tudo isto não basta para justificar porque escrevo. o que basta então para justificar alguma coisa na vida? Prefiro as minhas pequenas às grandes razões, pois estas últimas quase sempre apenas justificam mistificações insustentáveis frente a um exame mais detalhado".
Em 1962 teve um derrame cerebral e deixou de escrever. Passou a pintar, chegando a fazer duas exposições. Faleceu em 1968.


OBRAS:

Maleita (1934); Salgueiro (1935); A Luz no Subsolo (1936); Mãos Vazias (1938); O Desconhecido (1940); Poesias (1941); Dias Perdidos (1943); Novas Poesias (1944); O Anfiteatro (1946); Crônica da Casa Assassinada (1959); Diário Completo (1961); O Viajante (1970).

Um comentário:

  1. Adorei o comentário da obra.estou lendo o livro e estou gostando muito.
    obrigada por seu relato me ajudou a esclarecer minhas dúvidas em relaçao o filho de nina.

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